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Um Referendo à Margem da Lei

No fim, acabou por prevalecer a razoabilidade e, acima de tudo, o princípio da legalidade à qual estão vinculados os eleitos locais, fazendo cessar definitivamente esta aberrante proposta de referendo à margem da lei.

O Tribunal Constitucional (TC) determinou, por unanimidade, nos termos do Acórdão n.º 1/2025, de 3 de janeiro, não verificada a legalidade da Deliberação n.º 663/AML/2024, de 3 de dezembro, da Assembleia Municipal de Lisboa (AML) que aprovou a realização de referendo local municipal sobre o alojamento local (AL) em Lisboa. 

A decisão dos juízes conselheiros do Palácio Ratton foi no sentido de o referendo não ter bases legais para se poder realizar. Tal como a Iniciativa Liberal na AML sempre disse em todas as reuniões da Comissão Eventual (constituída nos termos da lei para analisar o texto original daquela proposta de referendo local), na apreciação e votação em plenário, tendo para tanto anexado à sua declaração de voto – que obviamente foi contra a realização daquela consulta popular, naquelas condições, com aquelas perguntas cuja manifesta ilegalidade saltava à vista desarmada e se antecipava declarada pelo TC – um parecer jurídico por mim próprio elaborado, onde de forma cronológica e detalhada expusemos o não cumprimento de requisitos formais, nem dos limites da lei, violando diversas normas do Regime Jurídico do Referendo Local (RJRL) e do Regime Jurídico da Exploração de Estabelecimentos de Alojamento Local (RJEEAL). 

Irregularidades procedimentais e ilegalidade formal

Com efeito, para que se perceba melhor, o TC identificou a inexistência de três requisitos formais essenciais na referida deliberação que aprovou a realização do referendo e que seriam o quanto baste para inviabilizar a realização daquela consulta popular aos cidadãos eleitores recenseados no município de Lisboa. Nomeadamente:

  1. À data da deliberação da AML, comprovadamente, as necessárias assinaturas dos proponentes eram em número inferior ao exigido pelo RJRL; 
  2. Os respetivos mandatários não estavam devidamente identificados nas folhas das assinaturas recolhidas, não se dando por provado que os cidadãos proponentes tivessem conhecimento de quem eram esses mesmos mandatários; 
  3. A Presidente da Assembleia Municipal de Lisboa (PAML), não solicitou (previamente) o parecer sobre a realização do referendo à Câmara Municipal de Lisboa (CML), nos termos exigidos pelo n.º 2 do artigo 24.º do RJRL;

A primeira conclusão é, pois, a de que as duas primeiras irregularidades apontadas pelo TC puseram em causa, por um lado, a legitimidade dos proponentes e, por outro, a legitimidade dos mandatários. Já a terceira irregularidade consistiu na inexistência de parecer da CML, legalmente necessário, constituindo uma ilegalidade da deliberação da AML, que apenas poderia ter sido tomada após conhecido o teor desse parecer. 

Ilegalidade substantiva 

Mas mais, o Tribunal Constitucional foi lapidar ao decretar ilegais as duas perguntas a sufragar e determinar “insanável” esse vício da deliberação de referendo, impedindo definitivamente a sua realização. Porquanto:

  1. A formulação das perguntas não cumpre os requisitos de «objetividade, clareza e precisão para respostas de sim ou não, além de sugerirem indiretamente o sentido das respostas», em violação do n.º 2, do artigo 7.º do RJRL; 
  2. As perguntas têm uma pretensão de introduzir soluções, por via de regulamento municipal, desconformes com a lei habilitante (RJEEAL) que vincula os municípios em matéria de AL, em violação da alínea b), do  n.º 1, do artigo 4.º do RJRL, que expressamente exclui do âmbito do referendo local «matérias reguladas por ato legislativo ou por ato regulamentar estadual que vincule as autarquias locais»;

A segunda conclusão, consiste assim no facto de o regulamento municipal não poder conter normas de interdição da atividade do AL «nem por via da definição do conceito de utilização válida do imóvel e nem pelo estabelecimento de zonas de contenção e de crescimento sustentável», porque a lei nacional que necessariamente habilita o regulamento municipal simplesmente não o permite, não tendo os municípios a competência legislativa que lhes permita inventar criativamente regulamentos administrativos. 

Reformulação da deliberação do referendo  

Pese embora o TC tenha declarado insanável o vício de ilegalidade daquele referendo impossibilitando em definitivo a sua realização, a PAML entendeu convidar a comissão executiva da iniciativa popular referendária a apresentar uma proposta de reformulação da deliberação com vista à sua sanação, no prazo de cinco dias, como estabelece o n.º 3 do artigo 27.º do RJRL, no que, diga-se em abono da verdade, foi cumprido pelos proponentes.      

Ora, mesmo que pudéssemos dar por sanada a questão da legitimidade dos proponentes da iniciativa popular, por força da verificação comprovada pelo MAI das assinaturas, em número suficiente, dos novos proponentes, o mesmo não se poderá assumir em relação à questão da legitimidade dos mandatários, mantendo-se inalterado o problema levantado pelo TC. Pior ainda em relação à reformulação apresentada quanto às perguntas: 

  1. «Concorda em alterar o regulamento municipal do alojamento local no sentido de a Câmara Municipal de Lisboa, em prazo não superior a um ano, determinar o cancelamento dos alojamentos locais registados na modalidade apartamento?»
  2. «Concorda em alterar o regulamento municipal do alojamento local para que o uso habitacional deixe de ser adequado à exploração de novos alojamentos locais nas modalidades apartamento e moradia?»

Dito isto, a terceira conclusão reside na persistência da presença evidente do mesmo objetivo proibicionista da atividade do AL em prédios de idênticas tipologias (apartamentos), pretendendo o seu cancelamento num prazo não superior a um ano, e determinando que o uso habitacional de imóveis, nas modalidades “apartamento e moradia”, se torne inadequado ao exercício daquela atividade, impossibilitando objetivamente a exploração de novos AL em toda a cidade de Lisboa, para tanto, insistindo no mesmo erro jurídico, i.e., de tais pretensões operarem por via de regulamento municipal. Portanto, sem nenhuma cobertura legal e, pelo contrário, em choque frontal com a lei nacional (RJEEAL) que vincula as autarquias locais, conforme vem explanado, com grande precisão, no Acórdão do TC.   

Apreciação e votação da proposta reformulada  

Aqui chegados – passando à frente a questão da admissibilidade – a proposta de reformulação da deliberação elaborada pela comissão executiva proponente, recebida pela PAML no dia 13 de janeiro de 2025 teria obrigatoriamente de ser apreciada e votada pela AML até ao dia 21 de janeiro de 2025, data limite a partir da qual o prazo de oito dias a que se refere o n.º 1 do artigo 27.º do RJRL ficou precludido.

Por conseguinte, a quarta conclusão é a de que no dia 27 de janeiro de 2025, data em que se realizou a sessão plenária propositadamente convocada para apreciação e votação desta proposta de reformulação da Deliberação n.º 663/AML/2024, mostrava-se manifestamente precludido o prazo para esse efeito, sendo intempestiva a referida proposta, o que a ocorrer seria outra ilegalidade cuja consequência seria a nulidade de tal deliberação.

Já no decurso da reunião, foi o plenário confrontado com a decisão da mesa em retirar o respetivo ponto da ordem de trabalhos, tendo essa decisão sido anunciada pela PAML e alvo de recurso interposto pelo deputado independente eleito nas listas do PS Miguel Graça, tendo o plenário votado maioritariamente pela retirada do ponto. Este insólito momento apenas foi possível pela estranha mudança de 180.º que o Grupo Municipal do PS resolveu tomar, quando durante todo este lamentável processo se desenvolveu ao arrepio da mais elementar legalidade, foi alimentado de forma absolutamente irresponsável pelo mesmo PS, apostado em referendar a todo o custo o Alojamento Local e a apadrinhar aquele inenarrável movimento popular de extrema-esquerda.

No fim, acabou por prevalecer a razoabilidade e, acima de tudo, o princípio da legalidade à qual estão vinculados os eleitos locais, fazendo cessar definitivamente esta aberrante proposta de referendo à margem da lei.

Um Referendo à Margem da Lei
Manuel J. Guerreiro 30 de janeiro de 2025
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