Portugal, pela sua geografia, história e laços multilaterais, tem uma posição ímpar entre três mundos que raramente se cruzam de forma articulada: a Europa, o Atlântico e a África lusófona. O desafio que se coloca à nossa geração política – civil e militar – é o de reconquistar relevância nestes três eixos, não por força de retórica ou nostalgia, mas por via de escolhas claras, estratégia e compromissos sustentados.
Temos, em primeiro lugar, de reconhecer que a paz de que desfrutamos há décadas é menos garantida do que muitas vezes presumimos. A guerra na Ucrânia, o alastrar de conflitos em África e a instabilidade tecnológica e energética global mostram-nos que não há paz sem defesa.
Não basta declarar intenções. É preciso dispor de meios. E Portugal tem de ultrapassar a sua hesitação crónica em relação ao investimento na defesa nacional, deixando de tratar o setor como um parente pobre do Estado e reconhecendo-o como uma das suas funções essenciais.
Gastar mais não implica gastar mal. É possível – e desejável – compatibilizar responsabilidade orçamental com reforço de capacidades. E é aí que a lógica liberal deve prevalecer: mais eficiência, menos desperdício, mais inovação, menos burocracia. Mas mais do que gastar, é crucial saber onde investir. Portugal, com a sua vasta Zona Económica Exclusiva e centralidade atlântica, não pode continuar a ignorar a evidência geoestratégica que nos define. Devemos especializar-nos, com clareza e ambição, na defesa e exploração do nosso espaço marítimo. Isso implica uma aposta decidida na Marinha, na vigilância oceânica, em capacidades navais modernas e polivalentes, e em tecnologias ligadas à segurança marítima e aos recursos energéticos do mar profundo. A nossa contribuição para a segurança coletiva passará, cada vez mais, pela proteção do Atlântico e da ZEE portuguesa.
A nossa pertença simultânea à NATO e à CPLP conferem-nos uma vantagem comparativa que urge aproveitar. A NATO, enquanto expressão institucional do Atlântico Norte, não pode ser vista como entidade alheia à nossa visão atlântica: é, antes, parte integrante dela. A Aliança Atlântica, tantas vezes tida por moribunda, demonstrou nos últimos anos uma vitalidade renovada e uma capacidade de adaptação face a ameaças convencionais e híbridas. Portugal não deve ser apenas um membro protocolar. Deve, sim, ser um parceiro útil e confiável. Isso implica investir em interoperabilidade, disponibilizar capacidades estratégicas e participar ativamente em missões e exercícios. Não podemos continuar a depender do guarda-chuva da NATO sem partilhar do seu esforço. Cumprir, de forma credível, a meta dos 2% do PIB – que muito em breve terá de ser de 5% – para a defesa não é uma questão de subserviência, mas de maturidade política. A nossa segurança individual só funcionará se estiver inserida no seu propósito coletivo, com maior robustez dissuasora.
Já que falamos no aumento do investimento em defesa, devemos aproveitar esta oportunidade para promover, em paralelo, o desenvolvimento económico e humano do país. Investir em investigação científica aplicada ao mar, à climatologia, à energia e à defesa — com polos estratégicos nos Açores, na Madeira e no litoral continental – pode ter efeitos multiplicadores: estimula o desenvolvimento de indústrias tecnológicas avançadas, fomenta o surgimento de empresas de base científica e cria milhares de empregos qualificados em áreas como a engenharia naval, inteligência artificial, robótica e cibersegurança, contribuindo, ao mesmo tempo, para fixar talento jovem e atrair investimento estrangeiro para Portugal
A CPLP, tantas vezes remetida a cimeiras simbólicas e comunicados anódinos, deve ser olhada com outra ambição: como um instrumento de política externa e de defesa partilhada. O potencial de cooperação em áreas como a segurança marítima, o combate ao terrorismo, o apoio logístico, a formação militar e a resposta a crises humanitárias é imenso. Portugal tem aqui um papel natural de liderança, não imperial nem paternalista, mas fraternal e tecnicamente competente. Isso exige uma diplomacia mais ativa e um Ministério da Defesa mais voltado para a cooperação internacional.
Há quem veja na relação com África apenas um legado cultural ou uma responsabilidade histórica. O que se propõe é algo diferente: uma parceria geoestratégica entre iguais. Os países africanos da CPLP enfrentam ameaças reais – do extremismo violento à pirataria, das redes de tráfico ao colapso institucional – e não podem vencê-las sozinhos. A segurança desses Estados é também a nossa quando constatamos que a estabilidade do Golfo da Guiné ou da costa moçambicana tem impacto direto na segurança do Atlântico e, por consequência, da Europa. Ignorar esse facto é abdicar de protagonismo num espaço onde a nossa presença é, ainda, valorizada e bem-vinda.
No plano europeu, a União atravessa uma transformação silenciosa, mas profunda. A defesa deixou de ser tabu, e o conceito de autonomia estratégica ganha força, embora nem sempre clareza. Portugal deve alinhar-se com uma visão realista dessa autonomia: a Europa deve fazer mais pela sua segurança, mas sem duplicar estruturas nem enfraquecer a NATO. Uma Europa que seja parceira forte dos Estados Unidos, não sua concorrente passiva. Neste contexto, Portugal pode e deve ser um intermediário lúcido, promovendo projetos comuns no domínio da cibersegurança, da inovação tecnológica, da proteção de infraestruturas críticas. A participação nos programas europeus de defesa, como a PESCO ou o Fundo Europeu de Defesa, deve ser ampliada com ambição e sentido estratégico. Temos conhecimento, Forças Armadas renomadas, universidades de enorme qualidade, centros de excelência e uma diáspora qualificada que pode ser convocada para este esforço.
O liberalismo não é indiferente à segurança. Pelo contrário: parte do princípio de que só há liberdade onde há ordem e proteção efetiva das comunidades. Um Estado liberal não é um Estado fraco. É um Estado que concentra os seus recursos nas funções fundamentais, entre as quais a defesa ocupa lugar de destaque. Num tempo em que as ameaças são difusas e o inimigo muitas vezes não veste uniforme, a defesa nacional precisa de ser repensada com racionalidade, inovação e ambição. Portugal não pode continuar a olhar para o mundo com os olhos de quem nada tem a perder. Temos muito: uma posição privilegiada, uma rede de alianças sólida e um capital humano qualificado.
A política externa e de defesa portuguesa está, pois, num momento de decisão. Ou nos escondemos nas costas dos outros, vulnerabilizando-nos, ou assumimos um papel proporcional ao nosso potencial. A escolha é nossa.