Janeiro, mês dedicado a Jano há mais de vinte séculos, deus romano das portas, dos começos e dos fins, representava as transições e a dualidade no Universo. A sua representação como divindade de duas faces representava o passado e o futuro, mas sobretudo a Dualidade que se estabelecia a partir da mesma origem.
A Clemência, conceito antiquíssimo do Direito e do exercício do Poder, abrange noções diversas como dispensa, direito de graça, perdão, indulto, amnistia.
Não deixa de surpreender que em múltiplos tempos e lugares, sob diferentes conceções políticas, filosóficas e jurídicas, a Clemência seja uma realidade permanente, sobrevivendo às vicissitudes do tempo histórico.
Por outro lado, não deixa igualmente de surpreender a aura de paradoxo que, mormente, acompanha a figura da Clemência ao longo da história, da sua história em concreto e das teorias sobre a mesma, no seu enquadramento jurídico, na sua compatibilidade com o fim das penas, ou com os princípios constitucionais.
Genericamente há duas linhas de pensamento sobre a legitimação da Clemência.
A primeira aquela que a justifica em função de determinados fins particulares, fins localizados e circunstanciais, que num dado momento, num dado lugar, e atentas certas circunstâncias, justificam a Clemência. Aqui podemos referir a título de exemplo: festejar uma nova autoridade, um novo governante, para solucionar um problema político ou jurídico, para festejar um acontecimento como uma vitória militar ou a visita de uma figura ilustre. Neste campo temos ainda a Clemência decretada relativamente aos vencidos na guerra ou a pessoas cujos feitos passados o justificam ou ainda a Clemência decretada fundamentada na esperança de que a mesma contribua para a regeneração dos condenados.
A segunda linha de pensamento – historicamente dominante- respeita à explicação e à justificação e legitimação da Clemência e advoga que a mesma tem como finalidade corrigir injustiças decorrentes da aplicação da Lei, ou seja, a Clemência como manifestação do poder de graça do soberano, visando acautelar casos em que, por diversos motivos, a aplicação da Lei se traduziria em injustiça, não se justificando, afinal a sua aplicação ( Rui Patrício – Um discurso sobre a Amnistia no Sistema Penal – Lisboa 1996)
Séneca (Córdova c.4 a.C.-Roma 65) foi o primeiro grande pensador a teorizar sobre a Clemência à qual dedicou um tratado moral, político e jurídico – De Clementia.
Neste texto primordial sobre o tema, é já evidente a visão da Clemência como ato de controlo de justeza da aplicação da lei penal- a Clemência é uma virtude cuja virtude complementar é o rigor (severitas) e nenhuma delas se confunde com os vícios que lhe são correspondentes- a misericórdia e a crueldade.
Significa assim que clemência e rigor se originam na razão- onde a pena é necessária não deve intervir a clemência, sob pena da ilegitimidade. Ao contrário, revelando-se não ser necessária a aplicação da pena, deve intervir a clemência, ambas justificadas racionalmente por contraponto à arbitrariedade ou discricionariedade do soberano que, nesse caso, seria sustentada pela irracionalidade e, portanto, ferida de ilegitimidade.
Mais tarde, os canonistas trazem a reflexão acerca da Clemência para o plano jurídico. São Tomás de Aquino que coloca a questão em termos jurídicos, retirando-lhe considerações morais ou políticas (ao contrário de Séneca) questiona sobre a legitimidade dos governantes em dispensarem das leis humanas, respondendo que sim – para os casos em que não se afigura conveniente aplicar essas leis, por serem, in casu, desnecessárias, perniciosas ou contraproducentes.
Em ambos os casos, trata-se, portanto, de averiguar se se justifica ou não a aplicação da Lei em determinados casos, sendo que a Clemência deve legitimamente intervir nos casos em que a aplicação da Lei não se justifique por ser injusta. Em síntese, a dispensa legítima da Lei, não é, em São Tomás ou em Séneca, um ato de vontade arbitrária, mas sempre e só, um ato de racionalidade de justeza da aplicação da Lei, sendo que a sua dispensa não deve ter lugar em prejuízo do bem comum.
Chegados ao final do Séc. XVII inicia-se um debate entre os juristas e filósofos sobre a compatibilidade entre o conceito de Clemência, lato sensu, e Estado de Direito.
Fundadores do Direito Penal liberal no séc. XVIII, como Cesare Beccaria e Jeremy Bentham opunham-se ao direito de conceder graça para concluir que essa prerrogativa deveria ser considerada como um simples resquício feudal.
A discussão prolongou-se no tempo e nunca foi linear. Não se passou simplesmente de uma cultura política absolutista, em que o soberano estava acima dos julgamentos, a uma condenação iluminista do indulto em nome da racionalidade e da previsibilidade na aplicação da Lei. Nos primórdios do liberalismo político, dividiram-se os juristas entre o banimento completo do direito de graça, entendido como um resquício do absolutismo, e a recuperação dessa prerrogativa como um recurso do individuo contra a possibilidade de uma injustiça causada pelas próprias Leis.
Estava em discussão a visão racionalista, segundo a qual, a generalidade e a inflexibilidade da Lei seriam suficientes para garantir a liberdade individual e aqueles que, acreditavam, ser necessária uma instância que pudesse decidir se a Lei geral se aplicava com justiça ao caso particular.