Em 2019, a feira Art Basel em Miami testemunhou uma das obras mais comentadas da arte contemporânea: uma banana colada a uma parede com fita adesiva, intitulada Comedian, do artista italiano Maurizio Cattelan. O insólito objeto – uma banana comprada por poucos cêntimos – foi exibido pela galeria Perrotin e vendido inicialmente por cerca de 120 mil dólares, num gesto que oscilava entre a provocação e a sátira ao mercado da arte. A obra foi saudada pelo galerista Emmanuel Perrotin como “um símbolo do comércio global, um trocadilho visual e um dispositivo clássico de humor”. A banana tornou-se imediatamente assunto do dia, suscitando risos do público e olhares incrédulos de críticos que viam naquela transação um exemplo do caráter por vezes absurdo do mundo da arte contemporânea. De facto, durante a exposição, o artista performativo David Datuna retirou a banana da parede e comeu-a ali mesmo, alegando estar com fome – um ato que, longe de destruir a obra, apenas reforçou o cariz performativo e simbólico da peça, já que a galeria rapidamente substituiu a banana por outra, amparada pelo certificado de autenticidade que define a verdadeira essência da obra. Como comentou Lucien Terras, diretor da galeria, “Datuna não destruiu a obra de arte. A banana é a ideia”. Em outras palavras, Comedian não é sobre o objeto físico perecível, mas sim sobre o conceito e o comentário que carrega – nomeadamente, uma reflexão mordaz sobre como atribuimos valor às coisas.
O trajeto de uma banana comum – de uma mercearia local ao estatuto de obra de arte milionária – expõe e satiriza a dinâmica de circulação de mercadorias e valores no sistema da arte. Por que pode uma banana na parede custar dezenas ou centenas de milhares, enquanto um vendedor de fruta luta para sobreviver? – perguntava implicitamente Cattelan. A obra força-nos a confrontar a arbitrariedade do valor: o seu valor simbólico é construído pelo contexto e pela chancela do mercado da arte, e não por qualquer utilidade ou raridade intrínseca do objeto. Nesse sentido, Cattelan admitiu que Comedian é uma sátira à especulação de mercado – um comentário mordaz sobre como o mercado livre e a lógica do lucro podem inflacionar exponencialmente o valor de algo essencialmente banal.
A repercussão de Comedian aumentou exponencialmente nos anos seguintes. Em novembro de 2024, numa irónica confirmação da tese do artista, a “banana mais cara da história” foi leiloada na Sotheby’s de Nova Iorque por 6,2 milhões de dólares, adquirida após feroz disputa entre sete licitantes. O comprador foi o empresário sino-americano Justin Sun, figura destacada do mundo das criptomoedas, que declarou entusiasmado que a obra “representa um fenómeno cultural que une os mundos da arte, dos memes e da comunidade de criptomoedas”.
Comedian nasceu como paródia ao mercado, mas foi totalmente absorvido por este.
A banana tornou-se um ativo de luxo, e a sátira transformou-se ela própria em espetáculo lucrativo. Como observou um analista, Comedian acabou por se converter num “ouroboros hipercapitalista – apodrecendo, sendo substituído, apodrecendo de novo – com o seu valor firmemente enraizado no hiperintangível”. Em vez de desafiar o mercado, a obra passou a exemplificar como o capital consegue apropriar-se da própria crítica: as instituições que Cattelan pretendia satirizar (leiloeiras, colecionadores milionários, o hype viral) apropriaram-se da piada e converteram-na em status e lucro. Comedian, em suma, demonstra que na lógica contemporânea “arte é aquilo com que se consegue lucrar” – parafraseando Andy Warhol – e prova que se pode lucrar com (quase) tudo.
A trajetória de Comedian suscita questões profundas sobre a relação entre arte e mercado livre. No cerne desta discussão está o conceito de mercantilização da arte: a transformação de obras artísticas em mercadorias sujeitas às leis da oferta, procura e especulação. Sob a égide do liberalismo económico contemporâneo – frequentemente apelidado de neoliberalismo – a tendência é encarar a arte como mais um setor submetido à lógica do mercado. A crença central é que a livre concorrência e a mínima intervenção estatal produzem os melhores resultados, inclusive na esfera cultural.
Na prática, isso significa reduzir o apoio público e incentivar que a arte se financie através de mecanismos privados: vendas, patrocínios, mecenato, investimento de colecionadores. Os artistas e instituições culturais, nesse paradigma, operam num ambiente de mercado onde o valor das obras é determinado, em grande medida, pelo que um comprador estiver disposto a pagar.
Essa visão liberal do campo artístico tem efeitos ambivalentes. Por um lado, pode ampliar a autonomia e a diversidade: numa economia aberta, emergem galerias e criadores independentes, e os artistas não ficam sujeitos apenas às comissões estatais ou a critérios burocráticos para financiar as suas criações. Por outro lado, expõe a arte às dinâmicas muitas vezes perversas do mercado de luxo e da especulação financeira. O caso de Comedian – uma obra deliberadamente antieconómica na sua materialidade, mas convertida em artigo de especulação milionária – ilustra com acuidade esta contradição.
Num mercado absolutamente livre, o valor de troca de uma obra pode distanciar-se radicalmente do seu valor cultural ou do custo de produção. A obra vale milhões não pelo que é, mas pelo que significa para aqueles inseridos na elite económica e cultural – tornou-se um símbolo de distinção, um trophy intelectual.
Importa notar que a mercantilização da arte não é um fenómeno novo. Já em 1961, o artista Piero Manzoni ironizou o valor de mercado da arte ao enlatar as suas próprias fezes em 90 latas intituladas Merda d’artista, avaliando cada lata com base no peso equivalente em ouro. A intenção era ridicularizar a credulidade do mercado e o fetiche do objeto artístico. Décadas depois, porém, essas mesmas latas de Manzoni alcançaram preços estratosféricos em leilão – valores na casa das centenas de milhares de euros por unidade. A provocação anti-mercado converteu-se ela própria em mercadoria de luxo. Esse padrão – a crítica que é absorvida pelo mercado – repete-se ao longo da arte contemporânea e atinge talvez o seu auge na era do neoliberalismo global, em que o capital financeiro internacional descobriu na arte um refúgio de investimento e um veículo de prestígio. Obras de artistas mediáticos transformam-se em ativos cuja cotação flutua conforme tendências, e exposições tornam-se eventos mediáticos alinhados com marcas e marketing. Em termos práticos, isso significa que a lógica do lucro e da especulação pode acabar por ditar prioridades estéticas: aquilo que obtém visibilidade e recursos não é necessariamente o mais profundo ou socialmente relevante, mas sim o que melhor se integra nas dinâmicas de mercado e de espetáculo.
Maurizio Cattelan concebeu Comedian precisamente para interrogar essa lógica. A banana na parede coloca uma questão incómoda: até que ponto a arte contemporânea se tornou refém do mercado livre? A reação do público – entre a gargalhada e a irritação – mostra como a obra tocou num nervo exposto. Muitos sentiram-se excluídos ou ridicularizados por uma arte que parece uma piada de ricos para ricos. Nesse processo, a arte pode perder o pé em relação ao seu sentido mais humanista ou crítico, convertendo-se ela mesma num ativo financeiro ou num meme rentável. Cattelan convida-nos a rir desta situação; porém, como bem observou um crítico, “Cattelan convida-nos a rir, mas apenas se pudermos pagar o preço do bilhete” – no fim, o artista tornou-se cúmplice das absurdidades do comércio que ironizava.
Transpondo a discussão para o contexto português, pergunta-se: como se manifesta essa tensão entre arte e mercado num país de tradição cultural europeia social-democrata, mas onde ganha voz um novo liberalismo económico? A Iniciativa Liberal tem-se destacado no panorama político português precisamente por defender uma agenda de liberalismo contemporâneo, marcada pela promoção do livre mercado, redução do peso do Estado na economia e incentivo ao empreendedorismo privado. No domínio da cultura e das artes, a posição da IL reflete esses princípios. Enquanto a maioria dos partidos portugueses – da esquerda à direita tradicional – advoga um aumento do investimento público na cultura e apoios diretos às artes, a IL distingue-se por propor uma via diferente: descentralizar e diversificar as fontes de financiamento, reforçando o papel de mecanismos privados e da iniciativa individual em vez de simplesmente injetar mais dinheiro do Estado.
Nas propostas eleitorais recentes, a Iniciativa Liberal deixou claro que prefere estimular o investimento privado em cultura a estabelecer metas orçamentais públicas fixas. Em vez de aumentar a despesa do Estado no apoio às artes – como propõem outros partidos, alguns chegando a pedir 1% do PIB para a cultura – a IL defende incentivos ao mecenato cultural e modelos de financiamento mistos público-privados, como contratos-programa previsíveis ao invés de subsídios avulsos. Acredita que assim se reforça a autonomia financeira do setor cultural, atraem-se novos investidores e consolida-se um ecossistema “mais dinâmico, sustentável e livre”. A cultura, se bem estruturada e gerida com racionalidade, pode e deve ser um ativo económico importante para o país, gerando riqueza e coesão social. A IL sublinha que os agentes culturais devem ter liberdade de criação e produção, e que a competição saudável por diferentes fontes de receita (bilheteiras, patrocínios empresariais, crowdfunding, etc.) pode estimular a inovação e a qualidade no setor.
Em termos discursivos, a IL procura enquadrar a sua filosofia para a cultura de forma positiva, falando em libertar a criatividade dos constrangimentos burocráticos e empoderar os criadores através do mérito e da iniciativa privada. Não obstante, críticos apontam que há uma performance ideológica na retórica liberal: ao proclamar “menos Estado, mais liberdade” em todas as esferas, a IL estaria a promover uma narrativa em que o mercado é a panaceia universal, sem reconhecer plenamente as assimetrias de poder e os riscos de mercantilização excessiva.
A conjugação de todos estes elementos – a banana de Cattelan, o liberalismo de mercado, e o caso português da IL – oferece matéria para uma reflexão crítica sobre como o valor simbólico da arte se entrelaça com lógicas de mercado e de ideologia. Comedian ensinou-nos que o valor de uma obra não reside nem nos materiais nem sequer exclusivamente na visão do artista, mas sim num contrato social e económico: é o sistema da arte (colecionadores abastados, galerias, leilões internacionais, média cultural) que atribui ou retira valor a um objeto. Essa constelação corresponde, no fundo, a um microcosmo do mercado livre em ação, onde o preço de algo é determinado pela confluência de oferta, procura, narrativa e crença coletiva no valor. No caso da banana na parede, a crença partilhada por um segmento privilegiado foi a de que aquela obra, pelo seu conceito e notoriedade, valia seis milhões – e assim foi. Esse valor é eminentemente simbólico e performativo: ele existe porque os agentes do mercado agem como se existisse, num exemplo impressionante do poder da fé nos mecanismos do mercado.
O liberalismo económico exalta justamente essa ideia de que o valor de bens e serviços deve resultar da livre interação das preferências individuais no mercado. Da perspetiva liberal, se alguém paga uma fortuna por uma banana com fita adesiva, isso é uma expressão legítima da liberdade de escolha e da diversidade de valores no mercado – nenhum burocrata ou comissão estatal deveria arbitrar o que tem “verdadeiro” valor ou não. O mercado, soberano, emite o seu veredicto através dos preços. Sob este prisma, a arte torna-se talvez o exemplo mais puro de bem posicional: o seu valor depende do contexto e da perceção. Para a Iniciativa Liberal e congéneres, não caberia ao Estado dizer que financiar um quadro de um jovem artista é mais válido do que colecionadores gastarem milhões numa instalação satírica – são decisões dos atores livres no mercado cultural. Assim, o liberalismo contemporâneo tende a ver a arte sobretudo como uma esfera de liberdade criativa e econômica, onde a inovação floresce melhor sem amarras nem subsídios que possam introduzir distorções.
A banana colada à parede por Cattelan serviu de gatilho para uma discussão que ultrapassa em muito os muros do museu ou as manchetes insólitas. Funciona como metáfora e ponto de partida para questionarmos a influência do liberalismo económico na arte contemporânea, seja a nível global seja no contexto específico de Portugal.
Em Portugal, esta tensão manifesta-se num debate crescente sobre o papel do Estado na cultura versus o papel do mercado. A ascensão de um partido assumidamente liberal trouxe esse debate para o centro das atenções, obrigando artistas, gestores culturais e público a refletir: queremos a cultura entregue às regras do mercado, com o laissez-faire de uma banana que pode custar milhões? Ou entendemos a arte como um domínio onde outros critérios – educativos, identitários, de diversidade e inclusão – devem moderar a lógica do lucro?
Bibliografia
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