“Se o amiguismo, o clientelismo e o partidarismo são aparentemente visíveis, é normal que a perceção de corrupção seja elevada. O problema agrava-se quando muitas das propostas que surgem para mitigar e corrigir estes problemas são tão críticas quanto a própria corrupção.”
Portugal registou em 2024 o seu pior desempenho no Índice de Perceção da Corrupção desde 2012, quando a atual metodologia foi implementada pela Transparency International. O país caiu nove posições, ocupando agora o 43.º lugar mundial, com 57 pontos numa escala onde 100 representa a ausência total de corrupção. Entre os países lusófonos, Portugal manteve o segundo lugar, atrás de Cabo Verde — um facto que merece uma análise mais profunda.
No entanto, é crucial compreender que este índice mede a perceção da corrupção, não os casos efetivamente comprovados ou condenados. Para este nível de perceção muito contribuem dois aspetos.
A Educação e o Jornalismo como Fatores Diferenciadores
O primeiro fator é o nível de escolaridade dos portugueses. Segundo dados do INE, a escolaridade média da população entre os 16 e os 89 anos evoluiu do 7.º para o 9.º ano entre 2011 e 2024, com um crescimento constante no acesso ao ensino superior. De igual modo, constata-se que as percentagens de frequência e conclusão dos diferentes graus de estudos superiores têm crescido, como comprovam vários estudos elaborados pelo INE, Pordata e OCDE.
O segundo fator é a qualidade do jornalismo português. De acordo com a Reporters sans frontières, Portugal ocupava em 2023 o sétimo lugar entre 180 países em termos de qualidade jornalística. Mais impressionante ainda, o país alcançou o terceiro lugar mundial no indicador de isenção política nas redações, sendo um dos poucos a melhorar a sua pontuação num período em que a média mundial regrediu. A revisão anual destes dados deverá acontecer daqui a umas semanas, mas as últimas avaliações são deveras positivas.
Esta aparente contradição nos rankings internacionais revela um paradoxo interessante: o desenvolvimento social e educacional de Portugal, bem como a excelência do seu jornalismo, podem estar a contribuir para uma perceção mais aguda da corrupção. Uma população mais instruída, com acesso a informação de qualidade, desenvolve naturalmente uma consciência mais crítica e uma maior capacidade de identificar e questionar práticas irregulares.
A comparação com Cabo Verde ilustra este fenómeno de forma esclarecedora. Embora Cabo Verde apresente uma classificação superior no índice de corrupção, o país tem uma escolaridade média fixada no 5.º ano e um sistema de imprensa classificado em 41.º lugar mundial. Esta discrepância sugere que a menor perceção de corrupção em Cabo Verde pode não refletir necessariamente uma realidade mais positiva, mas, antes, uma menor capacidade da sua população para identificar e reportar práticas corruptas.
Esta análise não pretende minimizar os desafios que Portugal enfrenta no combate à corrupção, mas, sim, contextualizar os dados numa perspetiva mais abrangente. A maior sensibilidade dos portugueses para questões de transparência e integridade — resultado direto do progresso social e educacional do país — pode ser interpretada como um sinal de maturidade democrática, não necessariamente como um indicador de maior corrupção efetiva.
Os Verdadeiros Desafios Institucionais
O relatório da Transparency International aponta para uma avaliação profundamente negativa do funcionamento das instituições públicas portuguesas, com especial ênfase nas deficiências do sistema judicial. Esta crítica merece uma análise detalhada, pois revela fragilidades estruturais que minam a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.
A morosidade do sistema judicial português no tratamento de casos de corrupção emerge como uma preocupação central. Esta ineficiência tem raízes profundas: escassez de recursos materiais, quadros técnicos insuficientes e uma remuneração inadequada dos profissionais da justiça. Como consequência, os processos de maior complexidade — precisamente aqueles que envolvem esquemas sofisticados de corrupção — arrastam-se durante anos, vítimas de lacunas tanto nos recursos materiais, como nos recursos humanos escassos e mal remunerados.
A situação degrada-se quando, em muitas ocasiões, os arguidos são ilibados, os suspeitos não chegam a ser constituídos arguidos e as teses de acusação do Ministério Público carecem de bases sólidas de argumentação e de prova. Esta dinâmica tem gerado um fenómeno perturbador: o deslocamento do julgamento das instâncias judiciais para a praça pública, onde a comunicação social, alimentada por fugas de informação, acaba por conduzir a julgamentos populares que podem prejudicar irremediavelmente a reputação de inocentes.
O relatório da Transparency International identifica ainda lacunas sistémicas na prevenção de conflitos de interesse e na transparência das declarações patrimoniais dos políticos. Tudo isto contribui para a noção que os portugueses vão tendo de que existe uma forma de corrupção mais subtil, não necessariamente financeira, baseada em redes de influência e trocas de favores no exercício de cargos públicos.
Neste campo, é de lamentar que tantos comportamentos duvidosos fiquem a cargo do julgamento ético e moral, visto que são aceitáveis do ponto de vista legal. Particularmente questionável é a permissividade do quadro legal face a práticas que, embora tecnicamente legais, levantam sérias questões éticas. O sistema atual permite que titulares de cargos públicos acumulem múltiplas funções remuneradas e mantenham interesses em diversas entidades — uma situação que fragiliza a imparcialidade necessária ao exercício de funções públicas.
Como é possível que os cidadãos titulares de cargos políticos acumulem múltiplas funções remuneradas e mantenham interesses em diversas entidades? Como é possível que muitos portugueses continuem a se deparar com concursos públicos para contratação de empresas ou de funcionários que parecem autênticos “fatos feitos à medida”?
Como é possível que muitos portugueses que se candidatam a vagas em empresas públicas, com as habilitações académicas e o percurso profissional apropriados à vaga em causa, nem sequer sejam chamados a entrevista? Como é possível que as entidades públicas continuem a recorrer frequentemente a contratações externas que soam a favores a terceiros, mesmo quando existem quadros internos qualificados?
Se o amiguismo, o clientelismo e o partidarismo são aparentemente visíveis, é normal que a perceção de corrupção seja elevada. O problema agrava-se quando muitas das propostas que surgem para mitigar e corrigir estes problemas são tão críticas quanto a própria corrupção.
Quando André Ventura, líder do Chega que tem como bandeira ideológica o combate à corrupção, veio recentemente na Assembleia da República incitar uma jornalista a denunciar às autoridades o conhecimento de atos ilícitos a propósito do caso de roubo de malas do deputado Miguel Arruda, ou avançar na implementação de uma medida que permita à Assembleia o poder de exclusão ou destituição de cargo sempre que existam suspeitas sobre algum deputado, fez estas propostas assentes num clima de medo e suspeição que subverte os princípios democráticos, de liberdade de expressão e de defesa da honra.
As recentes declarações do Presidente da República durante a sua visita de Estado à Chéquia revelam-se particularmente pertinentes neste contexto. Num momento em que as emoções, frequentemente, sobrepõem-se à análise racional, torna-se imperativo fazer uma pausa reflexiva para examinar a realidade com maior objetividade. O verdadeiro desafio que enfrentamos não é apenas combater a corrupção, mas também impedir que perceções distorcidas e reações emocionais excessivas comprometam os alicerces do nosso sistema democrático.