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O assédio eleitoral

Opinião de Manuel J. Guerreiro no Jornal O DIABO
Já aqui abordei, neste espaço de opinião semanal, o tema do chamado “voto útil” que considero ser uma matéria importante, cuja persistência, resultante da própria lei eleitoral da Assembleia da República (AR) — quase 48 anos depois da entrada em vigor da Constituição de 1976 — assume uma grave limitação ao pluralismo da nossa democracia representativa, desvirtua os resultados eleitorais obtidos face à vontade original dos eleitores e, objectivamente, contribui para diminuir a qualidade do próprio regime democrático português. Numa democracia liberal consolidada, moderna e avançada, própria, aliás, de um país da Europa ocidental que há quase 40 anos é Estado-membro, de pleno direito, da União Europeia, circunstâncias dogmáticas inscritas na lei eleitoral da AR, em razão de um contexto histórico administrativo de uma realidade política e social que não mais existem no país, não têm por que permanecer inamovíveis e inalteráveis. Mais quando consubstanciam um factor de perturbação democrática e promovem uma desigualdade de armas na saudável disputa do eleitorado pelos diferentes partidos políticos concorrentes, tornando o sufrágio — exclusivamente este para a eleição dos 230 deputados parlamentares — num acto eleitoral profundamente desleal. Refiro-me aos actuais 22 círculos eleitorais, correspondendo a cada um deles um colégio eleitoral composto por um conjunto de deputados a eleger, tendo em conta o princípio da proporcionalidade populacional, mais concretamente do número de eleitores recenseados. Pelo que, quanto mais pequeno for um círculo eleitoral, isto é, quanto menos população e eleitores tiver — por exemplo no caso dos 18 distritos do território nacional continental — menos deputados conseguirá eleger e o mesmo “a contrario sensu”. Ora, sendo os deputados da Assembleia da República eleitos por listas plurinominais em cada círculo eleitoral, distribuídos proporcionalmente ao respectivo número de eleitores de cada um deles, segundo o método da média mais alta de Hondt pelo qual se procede à conversão dos votos em mandatos, tal significa a consagração legal dos seguintes factos colidentes com o princípio constitucional da igualdade, “in casu”, entre cidadãos eleitores, na plenitude do exercício da sua soberania, nomeadamente em razão do território. Assim, os deputados são eleitos com mais ou com menos votos necessários, consoante o círculo pelo qual concorrem, designadamente em virtude da dimensão do colégio eleitoral, ou seja, da quantidade de mandatos a eleger. Sendo precisos menos votos para eleger um deputado em Lisboa e mais votos para eleger um deputado em Faro. Portanto, os votos para a Assembleia da República não são todos iguais! A divisão do território em círculos eleitorais plurinominais promove uma variação inevitável do concreto valor que, comparativamente, cada voto representa em função da sua origem, i.e., do círculo eleitoral a que pertence. Pelo que, um voto em Bragança tem um valor necessariamente diverso de um voto no Porto. Portanto, os votos para a Assembleia da República não valem todos o mesmo! Lógica será a conclusão de que, em consequência dos pontos anteriores, os respectivos cidadãos eleitores têm mais ou menos preponderância individual na eleição dos seus representantes, dependendo do círculo eleitoral em que estão inscritos. Portanto, a lei eleitoral da Assembleia da República não trata todos os eleitores de forma igual! Decorrente deste completo absurdo que é a lei eleitoral da Casa da Democracia, assente em 22 colégios eleitorais autónomos para a eleição de deputados que, uma vez eleitos, representam o país na sua totalidade e não os círculos regionais pelos quais se candidataram. E sem que exista um círculo nacional de compensação que — à semelhança do que ocorre nas eleições para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores — absorva todos os milhares de votos dos 22 círculos que em cada eleição realizada não servindo para eleger ninguém, acabam, invariavelmente, por ir directamente para o caixote do lixo eleitoral, numa monumental demonstração de desprezo da democracia portuguesa pelos eleitores que ainda se dão ao trabalho de ir votar, num sistema obsoleto que o regime teima em manter em vigor. É, pois, perante este cenário fossilizado que emerge o conceito do “voto útil”, tendo, assumidamente, por objectivo condicionar o eleitor a votar noutras opções que não naquela em que efectivamente deseja colocar a cruzinha, levando-o a trair a sua vontade genuína e a sua escolha, através de um processo de convencimento quanto à suposta “inutilidade” desse seu voto intencional “emocional”, e consequente tomada de consciência da necessidade da sua substituição pela apregoada “utilidade” de um voto real “funcional”. Salvo o devido respeito, que é escasso, essa conversa da utilidade do voto que temos tolerado com demasiada ingenuidade tem uma designação: assédio eleitoral. O referido acto, perpetrado pelos partidos assediadores PS e AD (PSD), visa inferiorizar e ridicularizar os eleitores que pretendem votar nas candidaturas de outros projectos político-partidários que apresentam programas eleitorais, políticas e medidas concretas que vão mais ao encontro das suas preferências pessoais, afectivas, ideológicas e racionais. Eleitores esses a quem os mencionados assediadores eleitorais atribuem a culpa pela eventualidade de perderem as eleições para o outro e vice-versa. Argumentando que tais escolhas se traduzem por uma irresponsabilidade por força da inutilidade electiva que esses mesmos votos representam na esmagadora maioria dos círculos eleitorais, sendo mais útil votar no partido grande que mais se aproxima daquele outro em quem o cidadão eleitor iria votar originariamente, ou seja, no PS (à esquerda) e na AD (à direita). As consequências do assédio eleitoral para a vítima, i.e., o eleitor, são, principalmente, de teor psicológico, pese embora acabem também por prejudicar a saúde física, o bem-estar familiar e social, a estabilidade profissional, económica e financeira. Pois quando o eleitor se deixa assediar torna-se responsável pelo seu voto alternativo e do que daí resulta. Não havendo margem para arrependimentos ou desilusões. Perante o conhecido histórico factual dos últimos 20 anos, tais escolhas — ainda que secundárias, em nome de um pretenso “voto útil” para evitar “males maiores” — apenas garantem o aprofundamento da mediocridade instalada. Além de assédio, isto é uma chantagem intolerável que faz o eleitor perder o interesse e a confiança na política, desenvolvendo uma apatia que se agudiza perante os constantes casos e escândalos, promovendo o seu alheamento progressivo até se converter ao abstencionismo severo e irreversível. Pela vossa saúde, nestas eleições, não se deixem assediar. Votem útil votando em quem quiserem votar!
O assédio eleitoral
Manuel J. Guerreiro 6 de março de 2024
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