Como pode um partido que quer pôr o Estado a distribuir casas financiadas pelos lucros da banca venerar um Presidente que considera o Estado um tumor?
Os militantes do Chega parecem ter encontrado um novo messias na figura de Javier Milei. Nas redes sociais, entre um meme agressivo e uma tirada contra a “ditadura do politicamente correto”, surgem vídeos inflamados do Presidente Argentino, acompanhados de coraçõezinhos e daquelas palminhas de emoji que gritam entusiasmo digital. “Finalmente, um líder que diz as verdades!” Mas quais verdades, exatamente?
É curioso assistir à devoção do Chega por Milei, um autoproclamado anarcocapitalista que quer eliminar o Banco Central, privatizar praticamente tudo na Economia Argentina (e há mesmo muito para privatizar) e desmantelar o enorme Estado-social Argentino. Uma espécie de Thatcher de guitarra (ou motosserra) na mão, mas com menos compostura e um vocabulário digno de um barbeiro mal-humorado. O problema, claro, é que nada disto bate certo com o Chega.
O partido que em Portugal clama pelo reforço do Estado na Segurança, na Justiça e nas Pensões, que promete mais subsídios para os “portugueses de bem” e até sugere nacionalizações de empresas, encontra-se agora a idolatrar um homem que, em qualquer outro contexto, os chamaria de “socialistas de mierda”. Se há algo que aproxima Milei do Chega não é a ideologia – que nele até existe, ainda que levada ao paroxismo – mas sim o estilo: populista, estridente, teatral. Se Milei tivesse nascido em Lisboa, talvez se dedicasse a interromper adversários em debates televisivos e a pedir “respeitinho” com o dedo no ar, como Ventura tanto gosta de fazer.
Importa fazer um parêntesis: como liberal que sou, defendo um Estado mínimo, uma economia de mercado com pouca regulação e impostos baixos. Mas entre o liberalismo e o libertarianismo de Milei há um oceano de diferenças. O Estado deve ser magro, sim, mas funcional; eficiente, sim, mas não inexistente. O que Milei propõe não é uma sociedade livre, mas um salto para o vazio – e os Argentinos já estão a sentir as rajadas de vento. Dirão que o regime anterior – marcado pelo clientelismo e intervencionismo estatal sufocante – era muito pior do que aquilo que Milei defende. E eu concordo. Mas, curiosamente, era também bem mais parecido com aquilo que o Chega parece querer para Portugal (hoje, não sabemos como será o dia de amanhã de André Ventura).
Como pode um partido que quer pôr o Estado a distribuir casas financiadas pelos lucros da banca venerar um Presidente que considera o Estado um tumor? A resposta é simples: Milei não é para o Chega um modelo económico, mas um espetáculo. Como Trump ou Bolsonaro, ele existe para desafiar o establishment, para chocar, para encarnar o grito primal contra “o sistema”. O conteúdo pouco importa, desde que haja espetáculo. E nisso, convenhamos, Milei é uma verdadeira rockstar.
Mas Portugal não precisa de rockstars na política. E muito menos de políticos que mudam de ideologia consoante a figura internacional do momento. A devoção do Chega a Milei é um amor de Verão, excitante para eles, mas condenado ao ridículo. E, por isso, talvez esteja na altura de dizer: chega de Milei.
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Foto: Senado de la Nación Argentina, Domínio público, via Wikimedia Commons